O portão se
arrasta. O guarda dá um passo em seguida um homem avança. Algemas nos braços e
nos calcanhares. Seu corpo se move dentro do uniforme cinza, nem tão apertado,
nem tão solto, o tipo de medida que ele mesmo jamais encontrou para quando
comprava roupas, parece que cada centímetro desse lugar foi pensado para abrigá-lo.
A recepção
é sempre calorosa. O procedimento oficial é executado, não há mistério: o
detento recebe higienização, corte de cabelo e barba, verificação da saúde como
um todo e uma revisão dos registros. O procedimento extraoficial revela a
humanização da instituição. Como todo processo humanizado, esse procedimento é
criativo, cada grupo e cada instituição tem sua marca distintiva. Nesse caso, o
procedimento de boas-vindas era o seguinte: 10 a 15 minutos de espancamento em
silêncio, seguidos de uma lição de moral tirada da bíblia:
“Cada qual seja submisso às autoridades constituídas, porque
não há autoridade que não venha de Deus; as que existem foram instituídas por
Deus. Assim, aquele que resiste à autoridade, opõe-se à ordem estabelecida por
Deus; e os que a ela se opõem, atraem sobre si a condenação. Romanos 13:1,2.
Entendeu seu pedaço de merda? Você é um desordeiro! Seu badernista do caralho!!
Agora não ache que você é especial. Você só é mais um merda que foi enviado
para cá, e assim como os outros nós vamos te consertar!”
Depois
disso, cela. Um guarda, um preso. As pancadas deixam os internos tão moles que
eles começam a seguir ordens sem muita resistência. É verdade que os novos
internos não andavam com tanta confiança depois do tratamento extraoficial,
pareciam crianças reaprendendo a andar.
O guarda
parou. Em seguida o prisioneiro parou.
“Cela 42.
Entre, durma. Acordamos às 06 da manhã. Pela manhã, sua cara deve estar
arrumada, assim como sua cama. Nossas celas são limpas e você deve manter elas
assim. Conforme os dias forem passando, você aprenderá sobre nossa rotina, e
logo ela será sua rotina. Você será um de nós, porque agirá como um de nós. E
quando estiver pronto, poderá voltar para o convívio social”. O guarda terminou
de ler as instruções e desejou boa noite.
***
Pela manhã,
a sirene toca. Todos de pé. O recém-chegado observa o companheiro de cela para
aprender o que deve ser feito. Dobra o cobertor, estica o lençol na cama e
ajeita o travesseiro. O seu companheiro de cela faz com muita rapidez, o novato
não.
“Vamos lá!
Termine essa merda direito, ou eu também vou me foder!”, reclama o veterano.
“Porra, se
você está incomodado, porque não vem aqui e arruma você mesmo!”, rebate o
novato.
O veterano
responde com um olhar. Respira fundo. Pensa em explicar que se ele ajudar será
penalizado e se agredir o novato também será penalizado. Ele já possui dois
registros, não quer arriscar o terceiro registro, sabe muito bem o que acontece
com as pessoas que têm três registros.
“Foi o que
pensei. Você é um covarde mesmo!”, diz o novato.
As grades
se batem, os portões se arrastam. Equipes de guardas entram no pavilhão. Seus
coturnos atingem o solo e ecoam passos orgulhosos. Uma voz anuncia por meio do
rádio:
“Senhores.
Bom dia. Inspecionaremos vossas acomodações. Nossas celas são limpas e organizadas,
e vamos mantê-las assim. Hoje é o 300º dia de nosso calendário, uma quinta-feira.
O clima está ameno e ensolarado, um belo dia para se visitar o parque com a
família. Coisa que nem eu nem vocês iremos fazer, é claro por motivos
diferentes. Vocês por serem o que são e eu por ter de vigiar suas carcaças. Por
isso, não me desapontem. Guardas, comecem a inspeção.”
Em pares,
os guardas abrem as celas. Um fica na porta, o outro entra, verificava as
camas, os prisioneiros e sai. Tudo em silencio. Se tudo estivesse bem, a cela
era trancada novamente e os prisioneiros poderiam se dirigir para o refeitório.
“Se prepara
novato. Espero que não impliquem com essa arrumação de merda que você fez.”
“Vocês não
tomarão café hoje. Ensine o novato a arrumar a cama direito. Essa bagunça é
inaceitável!”
Socos,
chutes e cacetadas.
“Já não basta
a bagunça que fizeram lá fora? Vocês querem fazer zona aqui dentro também? Eu
deveria adicionar outro registro em vocês...”
“Por favor,
não!” fala o veterano enquanto tenta se erguer.
“Quem te
deu autorização para falar?”, o guarda suspende a mão, porém hesita. “Você tem
muita sorte... vou te poupar de mais um registro... agora ensine o bebezão aí a
tomar conta da própria cama. Pelo amor de Deus, vocês tem um trabalho só e
mesmo assim conseguem cagar tudo...”
“Tá feliz
agora?”
“Eu poderia
de dar um sorriso de satisfação, mas a minha cara toda dói. Mas que porra é
essa? Por que tanto medo de mais um registro?”, perguntou o novato.
“Você não
sabe, não é? Não me surpreende. É o seu primeiro registro?” perguntou o
veterano.
“ Três registros.
Isso é necessário para te matarem. Como já estamos presos, não há necessidade de
julgamento. O que é decidido aqui e executado aqui. Quando se passa pelo
tribunal, pelo menos tem o advogado pra te defender... bem, aqui... aqui
dentro eles são os nossos juízes, nossos
advogados e.... e nossos executores...”
“Mas pensei
que essa história de três registros fosse uma lenda...”
“Toda lenda
vem de algum lugar, não é? Pois é... não é uma lenda. Com o nível de
detalhamento que essas canalhas conseguiram alcançar, não há nada que escape os
olhos do deles... Meu amigo, eles sabem a que horas você caga, a que horas você
tem fome... pode parecer exagero, mas suspeito que eles consigam decifrar a
hora que você quer meter... nada escapa, ou você anda na linha ou você recebe
um registro... aposto que eles sabiam quando eu ia... e é por isso que estamos
aqui.”
O novato
senta-se em sua cama. Coloca a cabeça entre suas mãos, seu coração dispara. As
coisas começa a se encaixar... ele agora entende porque está ali...
“Agora
presta atenção seu FDP, ou você anda na linha ou você recebe o registro, e se
chegar ao terceiro... você some... literalmente some. Já ouviu falar de alguém
que tenha recebido o terceiro registro? Claro que não! É porque quando se chega
ao terceiro registro não é somente a tua vida que arrancam... eles retiram a
memória de sua existência... é impossível provar que alguém existiu, depois que
essa pessoa recebe o terceiro registro...”
“Você deve
ser mais um desses malucos. Vai dizer que você acredita na Revolução também?”
“Ah,
muleque... você é jovem demais para lembrar... mas havia um ditado de quando eu
era menino: Quem controla o passado, controla o futuro. Quem controla o
presente, controla o passado.... e é exatamente isso que eles estão fazendo. Eles
suspeitam de mim... e é por isso que eu tenho de manter quietinho, sacou?”
“Você fala
muita merda...” falou o novato.
“Você não
se lembra disso... mas a gente se conhece.... o segundo registro faz isso com
as pessoas... você pode não acreditar em mim agora... mas logo verá que tenho
razão. O primeiro registro já faz com que as pessoas do seu circulo social
comecem a esquecer de você, depois o segundo atinge seus relacionamentos mais
próximos: amigos, alguns membros da família, etc. O terceiro registro... bem...
dizem que é lenda... mas o que escapa é que ninguém se lembra de alguém que
teve o terceiro registro...”
***
Passadas
algumas semanas, dois guardas chegam à cela 42.
“Novato,
levanta! Seu advogado conseguiu um alvará de soltura. Vamos, você deu sorte.
Nem deu tempo de te dar mais um registro...”
***
Todos os
dias de manhã era a mesma coisa. Levantava às 06, arrumava a cama, tomava café.
Crenças e hábitos dos outros se tornaram crenças e hábitos dele. “Essa é a
nossa rotina, logo, logo você fará parte ela também.”. O discurso do guarda
ainda reverberava em sua mente: “Nossas celas são limpas, e eu manterei elas
assim...”
A cada mês,
o novato tinha de ir até às autoridades
para comprovar que tinha se afastado das má condutas. Numa dessas visitas,
passou ao lado de seu advogado.
“Ei Murdock! Como vai? Muito trabalho? Eu te vi dia desses,
mas não consegui falar com você, a gente precisava ver como está minha
situação. Ter de vir aqui todo mês é um saco e...
Advogado
cortou o novato.
“Desculpe-me senhor, mas como você sabe meu nome?”