Mais uma
tarde quente de novembro. A cidade de Vitória é bela e abriga lindas praias. O calor
também é outro elemento característico da cidade: calor capixabês. Vitória é
aquele tipo de cidade que ainda não se decidiu se quer ser Rio de Janeiro ou
São Paulo quando crescer. Engloba a fluidez do imaginário e leveza da orla
carioca e ao mesmo tempo apresenta altos arranha-céus e pessoas de terno e
grava, em um calor que dura de outubro a junho.
A
universidade fica no meio desses mundos. A universidade é verde. Há uma extensa
relva entre prédios, devidamente aparada é claro. Tudo é tão naturalmente
artificial. No meio dessa relva há um filete de concreto que interliga os
destinos: uma passarela rasga a grama de uma ponta à outra, indica os caminhos.
No meio dessa relva, no meio dessa passarela está Ricardo.
É final de
semestre. O moço precisa devolver alguns livros. Dirige-se à biblioteca. Embora
ele não saiba, seu corpo poupa energia, um passo de cada vez; sobreviver o
calor é uma tarefa exigente para o corpo de Ricardo. O suor já percorre por
debaixo da mochila. Se ele tirar a mochila das costas poderemos ver o desenho
dela marcada no tecido.
A
biblioteca possui três andares. É um dos maiores prédios da universidade. Tem
amplas janelas que rodeiam toda sua extensão e grades para impedir o furto dos
livros.
O
procedimento padrão é deixar bolas, pastas e qualquer outro item que possa ser
suado para roubar livros em um dos armários.
As chaves
ficam penduradas nas portas. Basta escolher o cubículo, trancar e levar a
chave. Simples e rápido. Era para ser. Mas não para Ricardo. Ele perambula
pelas copiosas fileiras de armários até encontrar um que caiba sua grande
mochila. E nessa procura ele não está só. Duas moças, não muito mais jovens do
que ele repetem o procedimento. Ele não consegue ver seus rostos. Uma loira,
outra morena. Longos cabelos, o cabelo da loira um pouco mais ondulado do que a
da morena. Ambas com silhuetas bem delineadas, peles lisas, bundas arrebitadas
e redondinhas...
Ricardo não
consegue evitar. Por mais que haja um debate sobre a coisificação do corpo
feminino, ele não pode não pensar em outra coisa a não ser estar no meio
daquelas quatro pernas torneadas.
Ambas usam
shortes jeans curtos e leves blusas de alças. O calor estar de matar! Ricardo sente
o calor do ambiente e o calor de seus instintos. Controla-se, segura, respira
fundo, volta o olhar para o chão. Ainda é um homem racional. Por isso pode
aproveitar a cena como um evento estético; aprecia as formas dos corpos não só
como carne, mas como exemplares da beleza do corpo feminino; como estar diante
de duas belas estátuas de marfim. Ele disfarça, mas ao subir as escadas poucos
são os ângulos alternativos em que seus olhos não recaiam sobre as ancas das
moças. Elas sobem na frente e ele sobre três andares admirando aquelas curvas afrodisíacas.
Ao chegar
no terceiro andar, elas vão para um lado e ele para outro. O torpor hormonal é
cortado. “Jamais verei as caras delas”, disse para si mesmo. Não importa, já
tinha visto o suficiente.
***
A
biblioteca tem um sistema de busca informatizado, um aprimoramento que facilita
a vida de estudantes e pesquisadores. O usuário deve inserir o termo que busca –
assunto, nome do autor, nome do livro, etc. – no cambo de busca e clicar em uma
lupa. Depois de alguns segundos – normalmente é uma questão de segundos – os sistema
traz a relação de livros do acervo.
Ricardo
estava cansado da leitura técnica. Havia semanas que se dedicava ao estudo e
escrita de artigos. Um dos remédios para sua imaginação era recorrer a
literatura. Ficou sabendo de um tal de Jorge Luis Borges, ou algo assim. Um
escritor argentino. Ele ficou curioso para saber se o autor era digno da fama.
Ele empunhou
o mouse, arrastou-o até o campo de busca. Deu um clique. Olhou na tela. O campo
já estava preenchido. Alguém escreveu lá “orgasmo”, isso mesmo “orgasmo”. A
lista sobre o assunto era longa. “Acho
justo procurarem sobre o assunto. Mas, a pessoa que procura por orgasmo em um
biblioteca deve estar procurando no lugar errado. Há quem diga que a biblioteca
é uma espécie de paraíso, mas não é aqui que ela encontrará o orgasmo. Mais
fácil seria ir a um puteiro, né?”, pensou.
“Orgasmo e
sua função fisiológica”, “Prazer, gozo e orgasmo”, “Experiência e prática do
orgasmo feminino” foram os títulos listados entre outros. Ricardo sorri.
“As pessoas
levam isso a sério”. Apagou o histórico de busca e inseriu o que procurava.
Anotou o número da chamada e partiu.
Ricardo
jamais entendeu aquele sistema de chamada por completo. Certa vez, um grande
amigo seu dedicou alguns minutos explicando como funcionava. “Basta achar a
estante certa”, falava seu amigo. “Depois você olha esse número aqui, depois
desse número vai ter a inicial do sobrenome do autor...”. A única coisa que
Ricardo lembrava era “basta achar a estante certa”. Ricardo aproximava-se da estante enumerada e, por
sorte, sempre encontrava o que queria. Hoje não foi diferente. O que significa
que a sua maneira, Ricardo aprendeu a encontrar livros na biblioteca.
A estante
indicada era a última da biblioteca. Isso abriu espaço para a distração e para
pensar. Ainda achava a ideia de procurar sobre o orgasmo na biblioteca ridícula.
No entanto, admitiu que o sistema era honesto, o que se inseria ali poderia ser
encontrado.
Talvez a
ideia da outra pessoa não seja tão estupida assim. O que se insere no campo de
busca pode ser encontrado na biblioteca, não a coisa em si, mas algo sobre ela.
Ricardo
decidiu procurar por orgasmo na biblioteca também. Voltou ao sistema de busca.
Inseriu a palavra, anotou o número de chamada e seguiu em busca do orgasmo na
biblioteca, queria tirar a prova daquela
tolice! “Será? Será que encontrarei orgasmo na biblioteca? Isso é ridículo! E
como inserir a palavra Deus e esperar que se encontre Deus por aqui! Que
pensamento doentio! Mas já que estou aqui, por que não? Foda-se!”
Como dito
anteriormente, Ricardo jamais entendeu como aquele sistema funcionava, mas por
intuição – chamemos isso de intuição – sempre achava o que queria.
Passou por
muitas estantes. Virou à esquerda, virou à direita, seguiu reto por mais alguns
metros, virou à esquerda novamente, andou um pouco mais, virou à direita.
Sentiu-se em um labirinto. Andou por mais alguns metros e ficou diante de uma
parte da biblioteca que ele nunca tinha visto , embora acreditasse que conhecia
bem a biblioteca. “Essa secção é nova? Devem ter aberto depois da reforma. Por
fora a biblioteca não parece tão grande...”
***
Uma moça
loira e outra morena, ambas seguravam o mesmo livro. Liam juntas o “Experiência
e prática do orgasmo feminino”. Ricardo sorri. Elas não notaram que ele estava
ali. Ele teve tempo de contemplar todas as feições das moças. Ambas lindas.
Ricardo sabia que sua imaginação não iria enganá-lo. Não pode ver as faces das
moças antes, mas aqueles corpos já denunciavam a beleza de seus rostos.
Elas
desviaram o olhar do livro e repousaram suas vistas sob Ricardo. Devolveram o
livro a prateleira, o que é contra as regras da biblioteca. Abriram um sorriso
largo e malicioso, projetaram um olhar felino em direção a Ricardo e em passos
leves se aproximaram do rapaz.
“Você nos
encontrou”, disse a moça morena.